SOB PRESSÃO ESTUDANTIL, CHILE REPENSA SUAS UNIVERSIDADES; ESQUEMA DE BOLSAS DEVE SER REFORMULADO, de Guiherme Gorgulho, revista Ensino Superior, UNICAMP, Ano 3, Número 5, abril 2012, pp. 18-23.
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19/04/2012
Protestos
Reforma do ensino superior chileno entra em pauta
Para especialista, criou-se consenso político de que esquema de bolsas e créditos estudantis deve ser reformulado
Guilherme Gorgulho
Mesmo em comparação com nações mais desenvolvidas, a educação superior no Chile sobrecarrega em demasia o orçamento das famílias A onda de protestos estudantis que marcou o ano de 2011 no Chile exacerbou os problemas do modelo do ensino superior do país, que se destaca pelo baixo nível de financiamento público e pelo aumento da participação do setor privado. Esse modelo permitiu um grande crescimento da taxa de inserção no ensino universitário a partir do início da década de 1990, mas trouxe problemas, entre eles a dificuldade de acesso a bolsas e financiamento estudantil pelas classes menos favorecidas e o excessivo desequilíbrio na distribuição de recursos entre as universidades, fatos que culminaram com as manifestações nas ruas do país entre abril e dezembro.
Em comparação com outros países da América Latina ou até mesmo com nações mais desenvolvidas, a educação superior chilena é cara e sobrecarrega demasiadamente o orçamento das famílias no compartilhamento dos custos. Atualmente, existem três categorias de instituições de ensino terciário: universidades, Centros de Formação Técnica (CFT) e Institutos Profissionais (IP). Em média, a formação em um CFT demora dois anos; em um IP, para graduação profissional, quatro anos; e para graduação universitária leva-se cinco anos. Apenas as universidades podem oferecer programas de pós-graduação, sendo que os mestrados têm duração de dois anos e os doutorados, quatro.
Até 1980, havia no Chile duas universidades públicas e seis privadas. As públicas concentravam 65% das matrículas; as particulares eram praticamente bancadas por verba pública Em 1980, o Chile contava com 117 mil estudantes no ensino superior, o que representava apenas 7,2% do grupo etário entre 18 e 24 anos. Esse número cresceu para 245 mil estudantes em 1990, 678 mil em 2007 e chega a quase um milhão atualmente. Esse incremento ocorreu por conta de reformas adotadas pelo governo militar e, principalmente, pelos governos democráticos eleitos a partir de 1990. Até 1980, o ensino superior chileno contava somente com oito universidades – duas públicas e seis privadas. As duas instituições pertencentes ao governo – a Universidade do Chile e a Universidade Técnica do Estado – concentravam 65% das matrículas e possuíam vários campi pelo país, enquanto as seis universidades particulares tinham seu orçamento praticamente todo bancado pelo setor público.
A partir da década de 1980, a ditadura militar liderada por Augusto Pinochet criou mecanismos para o nascimento de novas universidades privadas com financiamento próprio, além de IPs e CFTs – que são privados, possuem orientação profissionalizante e podem ou não ter fins lucrativos. Já as universidades públicas foram descentralizadas e suas sedes regionais deram origem a novas instituições. No que se refere ao financiamento estudantil, um novo sistema entrou em vigor e transferiu grande parte dos custos para os estudantes. Segundo o estudo “La Educación Superior en Chile”, publicado em 2009 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Mundial, entre 1980 e 1990, descontando a inflação, o investimento público para educação superior sofreu uma queda de 41%. Além disso, uma reforma em 1981 concentrou a aplicação de recursos nas universidades públicas e nas instituições privadas subvencionadas pelo governo que integravam o Conselho de Reitores das Universidades Chilenas (CRUCH) – entidade independente, criada em 1954, responsável pela organização da Prova de Seleção Universitária (PSU), o vestibular chileno.
Trinta anos atrás, havia 117 mil chilenos no ensino superior, 7,2% do grupo etário entre 18 e 24 anos Ao longo dos anos 1990, nos sucessivos governos democráticos de coalizão de centro- esquerda, o número de universidades seguiu aumentando e foi criado o Conselho Superior de Educação (CSE) – órgão proposto ainda no governo militar, responsável por fiscalizar, credenciar e conceder autonomia às universidades, CFTs e IPs. De 1981 a março de 1990 (quando Pinochet deixou o poder), foram fundadas 40 universidades e 80 IPs; entre julho de 1990 e dezembro de 2005, foram criadas mais dez universidades e dez IPs, sendo que 38 instituições haviam sido fechadas, segundo o documento da OCDE. Atualmente, o Chile conta com 169 instituições de ensino superior – 44 IPs, 66 CFTs e 59 universidades, sendo 25 membros do CRUCH e 34 privadas. Existem dois tipos de universidades: as chamadas universidades tradicionais, que recebem fundos públicos diretos e em sua maioria foram criadas antes de 1981 (das 25 existentes, 16 são estatais, seis são católicas e três são universidades laicas privadas); e as universidades privadas não tradicionais, criadas a partir de 1980 pela iniciativa privada.
Dados do Ministério da Educação apontam um forte crescimento de 55% nas matrículas no ensino superior entre 2005 e 2011, quando o total de alunos passou de 637 mil para 989 mil, sendo 602 mil apenas nas universidades. Um exemplo da grande presença do setor privado no meio acadêmico chileno revela-se no ranking das instituições com maior número de matrículas em 2011: das dez primeiras, nove são universidades privadas não tradicionais e apenas uma pertence ao CRUCH, a Universidade do Chile, em 10º lugar.
A partir da década de 80, a ditadura criou mecanismos para o nascimento de novas universidades privadas “O problema principal é o desequilíbrio do financiamento do sistema. No Chile, o Estado contribui para a educação terciária com apenas um terço do que gastam anualmente as famílias e os estudantes. Isto ocorre porque todos os estudantes devem pagar uma taxa mensal que reflita mais ou menos o custo do curso, incluindo aqueles matriculados em universidades estatais ou públicas”, explica, em entrevista à Ensino Superior Unicamp, o sociólogo chileno José Joaquín Brunner, diretor da Cátedra Unesco de Políticas Comparadas de Educação Superior, na Universidade Diego Portales. Para o pesquisador, que foi ministro da Secretaria Geral de Governo do Chile entre 1994 e 1998, no governo Eduardo Frei Ruiz-Tagle, o desenho do esquema de auxílio estudantil precisa de “profundas correções” na busca de um maior equilíbrio entre gastos públicos e privados. “Com certeza existem outros problemas: é preciso melhorar e fortalecer a regulação do mercado da educação superior, conceder a ele uma maior transparência, tornar mais robusto o sistema e os procedimentos de garantia da qualidade, e revisar a pertinência dos currículos que são prematuramente especializados com fins profissionalizantes”, afirma Brunner, complementando sobre a necessidade de impulsionar a formação de doutores e investir mais e melhor em pesquisa e desenvolvimento.
Devido ao alto custo dos estudos em universidades privadas e à relativamente baixa proporção de estudantes que conseguem acesso ao auxílio estudantil, é preciso priorizar uma maior expansão das oportunidades de crédito e ajuda financeira para garantir que os jovens possam ter acesso à educação superior independentemente de sua classe social. O estudo “La Educación Superior em Chile” mostra que houve avanços nos últimos anos na oferta de recursos para bolsas, mas que apenas 13,8% dos alunos matriculados no ensino superior tinham acesso ao benefício. Entre 2000 e 2007, o valor destinado às bolsas subiu de US$ 40 milhões para US$ 173 milhões. Outro fator que contribui negativamente é que os valores não não suficientes para o pagamento das mensalidades em sua totalidade. Além das bolsas, o governo chileno proporciona um sistema de apoio financeiro com bônus de manutenção e créditos estudantis.
Ainda no início da década de 1980, o Chile foi o primeiro país da América Latina a introduzir a cobrança de mensalidades nas instituições públicas de ensino superior e atualmente é o que cobra as taxas anuais mais altas no nível de graduação, acima dos US$ 3.000, o que equivale ao cobrado em países desenvolvidos como Canadá e Nova Zelândia.
Entre 2005 e 2011, crescimento das matrículas no ensino superior foi de 55%; total de alunos passou de 637 mil para 989 mil, sendo 602 mil apenas nas universidades Dados da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), relativos ao ano de 2009, mostram que o Chile tinha 77% dos estudantes de ensino superior matriculados em instituições privadas, o que o deixa próximo de países como a Coreia do Sul (80%). O estudo “Educación Superior en Iberoamérica – 2011”, coordenado e editado por Brunner, revela que a América Latina e o Caribe compreendem a região do mundo com a maior proporção de matrículas privadas no ensino superior, alcançando uma média de 50%, sendo que o Chile é um dos cinco países acima dessa média, seguido por Brasil (72%), El Salvador (66%), Paraguai (63%) e Peru (54%).
Houve avanços nos últimos anos na oferta de recursos para bolsas, mas parcela dos alunos matriculados no ensino superior com acesso ao benefício não chega a 14% No entanto, no que se refere ao acesso das classes mais baixas, o Chile se destaca. “A participação na educação superior da quinta parte mais pobre flutua na América Latina e Caribe entre 27% e 2%. Os países com maior participação de pessoas provenientes de lugares de menores recursos são Equador [27,2%], Chile [19,8%], Argentina [19%], Panamá [18,9%] e Venezuela [15,6%] e, no outro extremo, estão Honduras [2,1%], Uruguai [2,2%], Peru [2,3%] e Brasil [2,7%]”, aponta o documento publicado no ano passado. O Chile ocupa esse lugar de destaque, afirma Brunner, acima do Brasil, México e Uruguai, “que, considera-se, possuem um setor mais forte e amplo de educação superior estatal”.
Para o sociólogo, o percentual de matriculados nas instituições públicas revela pouco sobre o problema, já que no Chile há grandes diferenças de complexidade, qualidade e eficiência entre as universidades estatais. Segundo o sociólogo, a expansão do sistema terciário a partir de 1990 é produto, sobretudo, das instituições particulares.
“O crescimento foi tão explosivo – a matrícula foi multiplicada em mais de quatro vezes entre 1990 e 2011 – que todos os estratos sociais foram favorecidos. Efetivamente, no Chile hoje cerca de 70% dos estudantes são da primeira geração de sua família que tem acesso a esse nível”, ressalta Brunner.
O Chile foi o primeiro país da América Latina a cobrar mensalidades em instituições públicas de ensino superior; taxa anual na graduação supera 3 mil dólares, equivalente à do Canadá Insatisfação nas ruas
A onda de protestos estudantis que se espalhou pelo Chile no ano passado de certa forma refletiu uma insatisfação que há anos vinha se acumulando no setor do ensino, já que em 2006, no primeiro ano do governo de Michelle Bachelet, o sistema de educação foi paralisado por uma greve nacional. Questionado por que os sucessivos governos democráticos que estiveram à frente do país desde 1990 não atenderam às demandas dos estudantes por educação gratuita, Brunner considera que, em países com altos níveis de desigualdade social, como Brasil e Chile, “a gratuidade significa subsidiar os mais ricos com os impostos dos trabalhadores cujos filhos às vezes ainda nem conseguem terminar o ensino secundário”. “Ao contrário, a gratuidade – que é regra na América Latina – não tem produzido nem altas taxas de expansão das oportunidades, ou mesmo de oportunidades de baixa qualidade, além de não ter favorecido a equidade no acesso nem a eficiência na graduação”, complementa. O especialista chileno em sistemas e políticas de ensino superior defende que a gratuidade só faria sentido se houvesse uma educação primária e secundária universal e de qualidade, a carga tributária fosse de aproximadamente 45% do Produto Interno Bruto (PIB) e a participação no ingresso nas universidades dos 20% de menor renda fosse de pelo menos um terço do total. “Sem essas condições, a gratuidade costuma ser uma arma que as elites utilizam para preservar, à custa da massa, seus privilégios”, opinou Brunner.
Nos oito meses de manifestações no Chile em 2011, as principais bandeiras foram a recuperação da educação pública e o fim do lucro no ensino superior, mas os universitários e secundaristas que foram às ruas expressar sua insatisfação com o sistema receberam apoio de outros setores, como sindicatos e entidades de classe. Os protestos, que incluíram ocupações de prédios de instituições de ensino e provocaram enfrentamentos com a polícia, tiveram seu ponto mais tenso em agosto, com a morte de um estudante ferido com um disparo da polícia.
Em 2009 o Chile tinha 77% dos estudantes de ensino superior matriculados em instituições privadas, o que o deixa próximo de países como a Coreia do Sul Em julho, em meio às manifestações, o presidente Sebastián Piñera substituiu o então ministro da Educação, Joaquín Lavín, por Felipe Bulnes, até então no Ministério da Justiça. Bulnes, entretanto, ficou apenas cinco meses no cargo, sendo substituído em dezembro por Harald Beyer. No final de março, Beyer se reuniu com os reitores do CRUCH e prometeu apresentar em 60 dias uma proposta para redefinição da chamada mensalidade de referência, base para a determinação dos valores das bolsas. O ministro solicitou também aos 25 reitores presentes que analisem a atual duração das carreiras universitárias e elaborem um documento indicando os motivos pelas quais esses cursos de graduação são “tão extensos”. Segundo Beyer, em média, um aluno obtém um título de graduação em 6,32 anos, enquanto que a média nos países da OCDE é de 4,32 anos. A reforma da educação está entre os principais temas a serem analisados pelo Congresso no início deste ano, com propostas como a proibição de aporte de recursos públicos em instituições de ensino com fins lucrativos, a criação da Superintendência de Educação Superior e as mudanças no sistema de créditos estudantis.
Para o sociólogo chileno José Joaquín Brunner, “sem certas condições, a gratuidade costuma ser arma que as elites utilizam para preservar privilégios, à custa da massa” “Existe agora um consenso político de que se deve redesenhar e ampliar os esquemas de bolsas e créditos. Desde já, a partir deste ano, os alunos provenientes dos 60% dos lares de menores recursos que ingressem na educação superior receberão uma bolsa para pagar suas mensalidades. Falta resolver o problema da espiral de custos das universidades; isso significa que, à medida que as bolsas e créditos são mais generosos, as instituições incrementam o valor das mensalidades que cobram”, explica Brunner. Os créditos também estão sendo alvo de revisões para aumentar o subsídio estatal às taxas de juros cobradas e para que a quitação das dívidas seja feita proporcionalmente à renda dos alunos ou de suas famílias. “O movimento conseguiu adicionalmente que o governo se comprometa a regular mais rigorosamente o mercado de educação superior, a obrigar as instituições a fornecer informações e a criar uma superintendência de educação que supervisionará o correto funcionamento financeiro das instituições.”
Um problema não resolvido é o da espiral de custos: à medida que as bolsas são mais generosas, as instituições cobram mensalidades mais caras Outros problemas prejudicam o avanço do ensino superior no Chile, como as deficiências na educação de segundo grau, que não cumpre satisfatoriamente sua missão de preparar os alunos para ingressar nas universidades; cursos universitários demasiadamente extensos e processos seletivos que perpetuam as desigualdades da sociedade chilena; falta de oportunidades e integração de currículos para a continuidade dos estudos de instituições de educação técnica superior para as universidades; e metodologias de ensino que não abarcam as necessidades do mercado de trabalho e as expectativas dos empregadores. Somado a esses fatores, um ponto fundamental é o problema da alta taxa de evasão no ensino superior. Devido a deficiências de formação, alguns estudantes provenientes de grupos sociais de menor renda levam mais tempo para concluir o curso, o que aumenta os custos do estudo e estimula a evasão, seja por razões acadêmicas ou financeiras. No entanto, o Ministério da Educação não dispõe de informações suficientes sobre todo o sistema de ensino para compreender quais grupos e faixas etárias acabam sendo mais atingidos pelo problema da evasão, o que prejudica a constituição de novas políticas públicas para o setor.
Que ações práticas deveriam ser adotadas a partir de agora para atender às demandas da classe estudantil de maneira a equacioná-las com as expectativas das instituições públicas, do setor privado e do governo? Brunner defende que o ponto principal é o aumento progressivo, nos próximos cinco anos, do gasto público com a educação superior, e que a maior parte seja destinada aos créditos estudantis subsidiados e às bolsas para pagamento dos custos dos cursos e da manutenção dos estudantes. Do ponto de vista das instituições, ele afirma que elas devem responder melhor às novas demandas da sociedade, revisando os currículos quanto à pertinência ao mercado de trabalho e às competências que os jovens necessitam para continuar aprendendo ao longo da vida. “É imprescindível também que o Estado disponha de melhores esquemas para o controle e o fomento da qualidade das instituições, sejam elas estatais ou privadas”, conclui.
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