O Futuro das Federais
By Simon on Jul 24, 2019 11:50 am
(Versão ampliada de artigo publicado em O Globo, 23/8/2019, p.3)
O programa Future-se, anunciado pelo MEC para fortalecer a autonomia administrativa e financeira das universidades federais, procura responder a um anseio antigo de dar às instituições maior autonomia e flexibilidade de captação e gestão de recursos orçamentários e de seus bens patrimoniais. Existem muitos detalhes do programa que ainda não estão claros, e este texto é uma primeira tentativa de entender e avaliar o programa segundo três aspectos principais, o institucional, o educacional propriamente dito, e o financeiro.
Institucionalmente, o ideal seria que as universidades deixassem de ser repartições públicas e adquirissem um status legal próprio, combinando a flexibilidade da legislação privada com mecanismos que garantam suas funções públicas. Isto já foi tentado no passado, com a transformação de várias universidades federais em fundações, mas com o tempo estas fundações perderam autonomia e flexibilidade, passando a ser administradas como as demais repartições públicas. Buscando uma saída, muitas universidades criaram fundações de apoio, de direito privado, para administrar recursos extraordinários de pesquisa e outros contratos, mas o relacionamento entre estas fundações e as universidades tem sido objeto constante de dúvidas e questionamentos.
O programa do MEC supõe que as universidades estabeleçam convênios com organizações sociais existentes ou a serem criadas, que assumiriam parte ou a totalidade de suas funções de gestão, governança e empreendedorismo, e não está claro em que medida isto seria diferente do que já ocorre com as fundações de apoio existentes. Embora a ênfase seja em convênios para a captação de recursos e implementação de atividades de pesquisa, é possível dar uma interpretação mais ampla, já que as OS teriam funções mais gerais de gestão patrimonial e dos planos de ensino, pesquisa e extensão das universidades. O modelo proposto lembra a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que hoje administra a maioria dos hospitais universitários federais.
Uma dúvida importante é quem comandaria estas organizações, e qual seria seu relacionamento com as reitorias, órgãos departamentais e coordenações de curso. A proposta não deixa claro se cada universidade teria sua própria OS ou não, mas prevê a criação de um Comitê Gestor para todo o conjunto, que, em última análise, substituiria o próprio Ministério da Educação nas funções de avaliação e controle do sistema. Também faz parte da proposta a criação de um novo “ranking” das universidades que seriam avaliadas e premiadas conforme sua eficiência no uso de recursos, que aparentemente se somaria aos rankings já produzidos pelo MEC que precisam ser reexaminados, e sobre os quais nada se diz.
A impressão que dá é que o novo programa é uma tentativa de contornar os problemas derivados do atual regime jurídico das universidades, mas teria sido melhor propor uma transformação mais profunda, retomando o modelo de fundações em seu formato original, como fez Portugal em 2007, ou transformando elas próprias em organizações sociais, como ocorrido com Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e outras instituições, ao invés de terceirizar sua gestão para estas organizações.
Do ponto de vista educacional, apesar de sua possível abrangência, o programa está destinado, claramente, a uma parte relativamente pequena das universidades, que são as atividades de pesquisa e inovação; mas, mesmo nas maiores instituições, o grosso da atividade é o ensino. Existem hoje cerca de 120 instituições federais de ensino e pesquisa, que atendem a cerca de 1.3 milhões de estudantes de graduação e 170 mil de pós-graduação, e mais cerca de 350 mil em cursos de nível médio, sobretudo nos institutos federais. A CAPES lista cerca de 3.500 cursos de pós-graduação nas federais, dos quais somente 140 são considerados de nível 7, de padrão internacional, 90% dos quais concentrados em 10 instituições. Estas, em princípio, teriam condições de se beneficiar do novo programa, se internacionalizar e atrair recursos competitivos públicos e privados. Os demais cursos de pós-graduação são, preponderantemente, de aperfeiçoamento profissional, nos quais a pesquisa tem importância secundária.
Um programa com esta abrangência deveria incluir uma reflexão aprofundada sobre o papel da pesquisa, da pós-graduação e da educação profissional dentro do sistema universitário, que parece estar ausente. No mundo inteiro, enquanto a pesquisa avançada se internacionaliza e fortalece seus vínculos com o mundo das aplicações, com o setor empresarial e com as agências governamentais em áreas cruciais de políticas públicas como saúde, meio ambiente, infraestrutura e segurança, o acesso à educação superior tende a se universalizar, com instituições de diferentes tipos, de educação geral ou mais voltadas ao mercado de trabalho, fazendo uso cada vez mais intenso de novas tecnologias de ensino individualizado e à distância, e com a presença cada vez maior de provedores públicos e privados. De um lado, há um processo de internacionalização, relevante sobretudo para universidades intensivas em pesquisa e pós-graduação, mas, por outro, de fortalecimento dos vínculos das universidades com seus contextos nacionais e regionais, para as quais a ênfase na internacionalização e a preocupação com os rankings internacionais não faz muito sentido. Uma política para o ensino superior que só veja um dos lados corre o risco de repetir, cinquenta anos depois, o equívoco da reforma universitária brasileira de 1968, que não considerou a grande massificação da educação superior que já vinha ocorrendo no resto do mundo e que começaria com força no Brasil logo depois.
Do ponto de vista financeiro, o sistema federal custa cerca de 60 bilhões anuais, dos quais 90% em salários e aposentadorias. Então, os novos recursos seriam “dinheiro novo”, o que seria bem-vindo, havendo a preocupação, no entanto, que isso leve a uma redução ainda maior do financiamento regular de custeio e investimentos. O Ministério prevê que o programa poderia captar cerca de 100 bilhões de reais, o que parece demasiado otimista, tanto quanto à capacidade das universidades atraírem investimentos quanto à disposição do setor financeiro do governo de criar incentivos fiscais e disponibilizar recursos próprios. Metade deste dinheiro viria da comercialização dos recursos imobiliários das universidades, o que parece inverossímil, dada a precariedade das instalações hoje existentes na maioria dos campi.
Para reduzir o atual engessamento financeiro existem dois caminhos importantes que precisam ser enfrentados, que a proposta do Ministério não menciona. O primeiro é substituir progressivamente os contratos de dedicação exclusiva de professores que não se dedicam efetivamente à pesquisa por contratos regulares de 40 ou 20 horas semanais, para profissionais ativos em suas profissões que ensinam em tempo parcial. As implicações legais desta transformação precisam ser estudadas, mas, na medida em que as universidades passassem a ter autonomia financeira efetiva, elas poderiam ter mais flexibilidade para contratar professores e pesquisadores em diferentes modalidades e de forma compatível com suas funções e com o mercado de trabalho profissional. O segundo caminho é o da cobrança de anuidades, hoje vedada em instituições públicas pela Constituição. O sistema de crédito educativo adotado pela Austrália, que o IPEA vem estudando, segundo o qual todos os estudantes recebem um crédito educativo a ser pago de forma proporcional à renda futura, administrado diretamente pela receita federal, parece ser o melhor caminho, que impede que alguém deixe de estudar por falta de recursos, e faz com que todos os que possam restituam às universidades parte dos custos dos benefícios educativos que receberam. Estimativas indicam que esta cobrança poderia resultar em recursos anuais da ordem de 10 bilhões de reais, mais do que o orçamento de custeio das federais.
Uma questão que também precisa ser contemplada é a do acesso das universidades estaduais, comunitárias e de fins lucrativos a estes fundos que seriam criados. Com 75% das matrículas, já é tempo de o setor privado deixar de ser considerado uma anomalia dentro da educação superior brasileira. Ele veio para ficar, cumpre funções que o setor público não consegue cumprir, e precisa ser objeto de políticas públicas que reconheçam sua especificidade, garantam sua qualidade e permitam que ele também tenha acesso aos recursos públicos de financiamento à pesquisa e à educação, de forma clara e transparente.
Cabe uma última observação, finalmente, sobre o processo de discussão pública aberto pelo Ministério da Educação a respeito do novo programa. Foi criado um espaço na Internet para o Ministério recolher comentários e sugestões, o que tem sua utilidade, mas não chega a se constituir em um processo efetivo de análise e trocas de pontos de vista com vistas a construir um consenso mais rico e mais aprofundado, como necessário.
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