A Base Nacional Curricular e a Reforma do Ensino Médio
By Simon Schwartzman, on Apr 09, 2018 06:12 am
Esta é a versão completa de meu comentário sobre a proposta da Base Nacional Curricular do Ensino Médio, publicado de forma resumida no jornal O Estado de São Paulo em 9/4/2018
A Base Nacional Curricular e a Reforma do Ensino Médio
Depois de meses de expectativa, o Ministério da Educação revelou sua proposta para a Base Curricular do Ensino Médio, que deveria indicar como a reforma do ensino médio aprovada em fevereiro de 2017 deve ser implementada. É um documento de 150 páginas, ainda por ser revisto pelo Conselho Nacional de Educação, que, ao mesmo tempo, está elaborando suas próprias “diretrizes curriculares” para o ensino médio. Tudo isto deve convergir, em algum momento, no gabinete do Ministro da Educação, que pode ou não homologar os trabalhos e transformá-los em política governamental.
O que pensar deste documento, e do que ele promete para a melhoria do ensino médio brasileiro? Creio que é possível discutir isto em dois níveis, o da concepção geral e o do conteúdo em si do documento.
Quanto à concepção geral, a proposta pode frustrar ainda mais as boas intenções que estavam contidas, pelo menos em parte, no projeto inicial da reforma do ensino médio. A intenção era sair da camisa de força de um currículo acadêmico, tradicional, pesado e único, que não abria espaço para itinerários formativos distintos, de natureza acadêmica ou profissional, e substitui-lo por um programa enxuto, com um núcleo central de formação básica, sobretudo de linguagem e raciocínio matemático, e um leque de alternativas claras de aprofundamento, sejam mais acadêmicas, com opções nas áreas das ciências naturais ou sociais, ou vocacionais, com um leque mais amplo de opções. O pressuposto era não só que o currículo tradicional era inexequível, como que os estudantes chegam ao ensino médio com interesses e formação muito distintas, e é necessário oferecer opções de formação e aperfeiçoamento apropriadas a diferentes perfis.
A proposta provocou a oposição de todos que temiam que suas matérias de preferência ficassem de fora ou perdessem importância, e conseguiram que a parte comum passasse a ocupar a maior parte do tempo escolar – até 1.800 horas em três anos, ou 60% das três mil horas que todo o ensino médio deveria durar ao longo de três anos a partir de 2017, o que está ainda longe de se efetivar. Nesta parte comum inchada voltaram os temas cujos defensores se sentiam ameaçados– educação física, sociologia, filosofia, arte, entre outros – e ficaram de fora temas como a economia, o direito e as tecnologias propriamente ditas.
Todas as 150 páginas do documento do Ministério foram dedicadas a elaborar o que seria esta parte comum inchada, e nada foi feito no sentido de especificar quais seriam os conteúdos básicos dos itinerários formativos, deixados para ser implementados a critério de cada escola ou rede escolar. O Ministério também decidiu não fazer nada no sentido de substituir o atual ENEM, que força todos os alunos a se preparar para um exame único, por um conjunto limitado de opções, sem as quais a diferenciação não tem como se dar. Em resumo, o documento confirma que o Ministério da Educação não “comprou” de fato a ideia da diversificação, que fica assim postergada até que um novo governo, quem sabe, decida aproveitar os espaços criados pela nova legislação, ou encaminhar uma nova, para de fato avançar.
E o que dizer do documento em si? É um texto prolixo, carregado de frases aparentemente eruditas mas frequentemente retóricas e muitas vezes equivocadas. Ele procura definir os marcos a partir do qual cada rede ou escola possa estabelecer seus próprios currículos, mas isto é feito através de listas extremamente detalhadas de boas intenções que, me parece, ou não servem para nada, ou podem se transformar em pesadelos se o Ministério pretender um dia verificar se estão sendo de fato implementadas. O documento procura fugir, de propósito, da organização do conhecimento em disciplinas e linhas de pesquisa e estudo, que é a forma em que o conhecimento se dá e é transmitido na prática, e procura substitui-los por uma linguagem formal e abstrata de “competências” e “habilidades” que pode ser útil em processos muito específicos de treinamento para atividades práticas, mas é muito questionável quando se pretende aplicá-la a processos formativos mais amplos.
Para dar um exemplo, na área de “linguagem e suas tecnologias”, que, no entendimento peculiar do MEC, é uma “área de conhecimento” que inclui português, inglês, dança e educação física (?!), uma das sete “competências específicas” a ser desenvolvidas é “compreender o funcionamento das diferentes linguagens e práticas (artísticas, corporais e verbais) e mobilizar esses conhecimentos na recepção e produção de discursos nos diferentes campos de atuação social e nas diversas mídias, para ampliar as formas de participação social, o entendimento e as possibilidades de explicação e interpretação crítica da realidade e para continuar aprendendo”. Estas sete competências específicas são detalhadas em 25 “habilidades”, a primeira das quais é “compreender e analisar processos de produção e circulação de discursos, nas diferentes linguagens, para fazer escolhas fundamentadas em função de interesses pessoais e coletivos”. Na parte específica da língua portuguesa, são especificadas mais 53 “habilidades” em cinco diferentes “campos”, uma das quais é “analisar relações de intertextualidade e interdiscursividade que permitam a explicitação de relações dialógicas, a identificação de posicionamentos ou de perspectivas, a compreensão de paródias e estilizações, entre outras possibilidades”.
Na área de “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”, que na concepção do MEC inclui filosofia, geografia, história e sociologia (mas não economia, direito, ciência política, antropologia, linguística ou administração) a primeira das competências é “analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos, a partir de procedimentos epistemológicos e científicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente com relação a esses processos e às possíveis relações entre eles”; e, para fazer isto, a primeira das habilidades seria “analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão e à crítica de ideias filosóficas e processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais”. . .
Na matemática, que teve a sorte de ser preservada como uma disciplina em separado, a listagem de habilidades e competências faz mais sentido, como por exemplo, a habilidade de “resolver e elaborar problemas do cotidiano, da Matemática e de outras áreas do conhecimento, que envolvem equações lineares simultâneas, usando técnicas algébricas e gráficas, incluindo ou não tecnologias digitais”, associada à competência de “investigar relações entre números expressos em tabelas para representá-los no plano cartesiano, identificando padrões e criando conjecturas para generalizar e expressar algebricamente essa generalização, reconhecendo quando essa representação é de função polinomial de 1º grau”. O problema principal, nesta área, é definir quanta e qual matemática os estudantes que estejam se preparando para cursos superiores nas engenharias, ciências sociais, na literatura ou em cursos profissionais como auxiliar de enfermagem ou processamento de dados, precisariam e teriam condições de aprender.
Na área das ciências naturais as coisas se complicam novamente, porque, apesar do que o MEC diga, não existe uma “área de conhecimento” denominada “Ciências da Natureza e Suas Tecnologias” e sim diferentes ciências como física, química, fisiologia, bioquímica, genética, etc., e tecnologias como robótica, mecânica, computação, engenharia genética e tantas outras. A segunda das habilidades propostas para esta área é “construir e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar decisões éticas e responsáveis”, que pode incluir as teorias de Hawking sobre a origem do universo, as teorias evolucionistas de Darwin e as teorias criacionistas mais radicais; e com o problema adicional de pretender usar estas teorias para “fundamentar decisões éticas e responsáveis”, o que talvez pudesse ser tratado no campo da filosofia normativa, mas não, seguramente, no campo das ciências naturais enquanto tais. Uma das competências associadas a esta habilidade seria a capacidade de “analisar e utilizar modelos científicos, propostos em diferentes épocas e culturas para avaliar distintas explicações sobre o surgimento e a evolução da Vida, da Terra e do Universo”, difícil de ser adquirida sem um bom doutorado em história e filosofia das ciências.
Eu acredito que escreva razoavelmente e conheça relativamente bem minhas áreas de formação em ciências sociais, nas nunca teria chegado aonde cheguei se tivesse que passar pelo ensino das 53 habilidades em português e as outras dezenas de habilidades em matemática, ciências naturais e ciências sociais. Não é assim que as pessoas se formam.
O que deve acontecer com este documento? É improvável que o Conselho Nacional de Educação venha a melhorá-lo. Como, ao lado da elaboração bizantina de habilidades e competências, os currículos ficaram a cargo das escolas e redes, o mais provável é que ele venha a ser ignorado. Com a nova lei e estas bases curriculares, o ensino médio ficou mais amorfo, o que pode ser aproveitado pelas escolas e redes para criar suas próprias alternativas, não fosse o fantasma do ENEM no final do túnel, fechando o caminho para todos exceto os privilegiados das escolas privadas e públicas de elite que conseguem preparar seus estudantes para o paraíso do ensino superior de mais qualidade.
Para os demais, nada muda.
————————————————————————————————
Claudio de Moura Castro: Comentários à Base Nacional do Ensino Médio
By Simon on Apr 10, 2018 11:02 am
Finalmente temos uma nova orientação para o Ensino Médio. No geral, o documento apresentado ao CNE caminha na boa direção, mantendo a ideia de diversificação, seja das disciplinas, seja admitindo as grandes diferenças individuais e entre os grupos que frequentam esse nível de ensino.
Não obstante, tenho comentários e objeções a diferentes aspectos da sua redação. Começo com observações genéricas e, em seguida, passo para outras mais específicas a cada um dos seus grandes componentes (Linguagem, Matemática, Ciências Naturais e Ciências Humanas e Sociais).
1. Um documento de política (seja educacional ou em outros campos), deve tratar os assuntos em pauta de forma diferente, conforme seja a inclinação da sociedade para a qual se dirige. Assim sendo, nas áreas em que a sociedade tende a andar espontaneamente, em linha com o proposto, o tratamento deve ser breve. Afinal, é o que iria acontecer sem a existência do documento. Em contraste, a sua ênfase ou força deve ser colimada para aqueles temas em direção aos quais a sociedade “não gosta de ir”. Ou seja, bater forte onde há resistências e oposição, diante de uma orientação importante, mas na contramão das gentes. Infelizmente, não é isso que se observa, como ilustrado adiante, quando entramos no específico. Pelo contrário mais espaço é devotado ao que está na moda do que nas direções necessárias, mas pouco simpáticas à maioria.
2. O texto é demasiadamente longo e frequentemente obscuro, valendo-se de termos pouco conhecidos e contendo proposições indecifráveis. Ora, o objetivo é orientar o Ensino Médio e não deixar patente a erudição dos seus autores. Sendo assim, opacidade é a estratégia errada. (Por exemplo: “o trabalho é o princípio educativo à medida que proporciona compreensão do processo histórico de produção científica e tecnológica, como conhecimentos desenvolvidos e apropriados socialmente para a transformação das condições naturais da vida e a ampliação das capacidades, das potencialidades e sentido humanos . . . Nesse sentido, procura-se oferecer ferramentas de transformação social por meio da apropriação dos letramentos da letra e dos novos e multiletramentos. Os quais supõem maior protagonismo dos estudantes, orientados pela dimensão ética, estética e política”). Como já aconteceu antes, será necessário que alguém o traduza em uma linguagem acessível para o grande público e mesmo para pessoas não necessariamente versadas em certos assuntos, como é o meu caso. O oráculo de Delfos pontificava com palavras enigmáticas, precisando de alguém que as decifrassem. Estamos mais ou menos na mesma situação.
3. Para os usos a que parece destinado, é um documento grande demais e que se espraia em detalhes de menor importância, diluindo o foco que deveriam merecer aspectos particularmente críticos. Como está, por exemplo, a preocupação central de desenvolver competência no uso do Português está diluída em inúmeras piruetas sobre novas mídias, Educação Física e outros assuntos menos críticos. Ilustrando, se fosse eu a redigir o texto, falaria de desenvolver capacidade analítica de leitura e ler os clássicos como temas centrais, destacados dos outros. O resto é o resto. Há várias maneiras de lidar com assimetria de importâncias. Uma delas seria ter um documento síntese, chamando a atenção para os pontos mais centrais, seguido de outro, com os detalhes e complementos. Talvez outra alternativa mais palatável seja dar um destaque especial para o que é verdadeiramente importante, diante de outros aspectos mais complementares do que essenciais. Como está, falta foco e centralidade naquilo que é fundamental, pois está diluído em meio a assuntos periféricos.
4. É correto que se estabeleça o que o estudante será capaz de realizar, ao terminar este ciclo de ensino. De fato, este é o espírito de uma proposta deste tipo. Mas o nexo dessa competência com o currículo que se plasmará nos livros texto emerge de forma muito tênue. Em Matemática chega-se mais perto. Mas em outras áreas, será um esfinge indecifrável, mesmo para os autores de livros e outros interessados.
5. Nesta mesma linha, permanece uma grande ambiguidade o como ensinar os conteúdos com “integração e Interdisciplinaridade”. Afirma-se que é preciso romper com a “centralidade das disciplinas”. Mas como se chega lá, na prática, é assunto brumoso. Física é Física, é preciso aprender suas leis e princípios dentro da disciplinaridade que gerou suas esplêndidas realizações. Não dá para misturar o estudo metódico da mecânica newtoniana com química e biologia. Para ilustrar como se ensina alhures, podemos consultar os currículos de Ensino Médio da Phillips Academy e da escola Louis Le Grand, respectivamente, a melhor dos Estados Unidos e da França. Em ambas, os cursos são oferecidos na forma disciplinar tradicional. Não há menção a ofertas interdisciplinares. Será por que são escolas da “velha guarda”? Ou não se descobriu forma melhor de ensinar? Tanto quanto entendo, a interdisciplinaridade – ou que termos queiramos utilizar – vem depois, nas aplicações e projetos. O documento é reticente, senão infeliz, ao não esclarecer esse ponto. Se está propondo uma revolução ainda não vislumbrada pelos países no topo do PISA, é bom que todos saibam desta ambição. Se não é isso, e a integração é apenas nos projetos, também precisamos saber.
6. O documento fala da importância de “preparar para o trabalho”, uma preocupação mais do que legítima. Mas trata-se de um objetivo amplamente nebuloso. O que é preparar para o trabalho em um programa acadêmico? As belas propostas das escolas Sloyd, na Escandinávia, foram uma fórmula inteligente de introduzir trabalhos feitos com as mãos em escolas acadêmicas. Não visavam ensinar um ofício mas a usar manualidades para enriquecer a educação acadêmica. No passado tivemos uma caricatura desta linha, nos malfadados Trabalhos Manuais. É disso que estamos falando? Por que não? De certa maneira, a nova moda dos programas na linha STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) recupera o mesmo espírito do Sloyd, com novas roupagens. De uma outra perspectiva, há quem diga que a melhor preparação para o trabalho é uma excelente educação acadêmica. Com efeito, é difícil imaginar algo mais útil para a vida profissional do que ler bem, entender, escrever escorreitamente, usar números para lidar com problemas do cotidiano, pensar com bom rigor analítico e ter uma ampla visão de mundo. O resto é detalhe. Mas pensando bem, esta é também a essência de uma sólida educação geral. Se isso é correto, o que se estará querendo dizer ao falar de “preparar para o trabalho”? Será algo diferente do que a escola se propõe a fazer no seu currículo? Note-se que esta discussão passa longe do Ensino Técnico, assunto cujo conteúdo não pertence à Base Curricular.
Linguagens
Esta parte é demasiado longa e perde-se em detalhes e modismos. Deveria ser muito mais concisa e com foco no mais importante. Na verdade, há um desequilíbrio essencial na sua estrutura. Se falamos de linguagens, há um tema que deveria dominar a apresentação, dando-lhe o relevo que merece. Em contraste, grande parte do espaço é devotado a uma multidão de uso das linguagens, em contextos novos e variados.
Voltando ao que considero o núcleo ausente: como dizia Wittgenstein, meu domínio das palavras determina minha capacidade de pensar, pois pensamos com palavras. Nós, brasileiros, nos comunicamos em português, portanto, pensamos nesta língua. Sendo assim, dominá-la é um objetivo que faz todos os outros empalidecerem.
Por que nossos alunos se saem mal no PISA (e na Prova Brasil)? Antes de tudo, porque não entendem o que estão dizendo as palavras. Decifrar com rigor o que está escrito é uma das funções mais nobres e centrais da escola. Em um texto bem escrito, só há uma interpretação possível. Se há ambiguidades, é porque está mal escrito. Aprender a arte de ler com precisão é uma tarefa para toda a carreira dos estudantes, até no doutorado. Igualmente, identificar as imprecisões e ambiguidades que condenam o texto
Este é o reinado indisputado da “norma culta”. Em qualquer lugar, dominá-la é um dos pilares de uma sólida educação. Jovens escolares em Zurique falam em casa o dialeto Switzerdeutsch, derivado do alemão. Mas na escola, tudo acontece no Hoch Deutsche, a língua padrão. É com ela que estudam ciência e literatura. Por que disseminar ambiguidade diante do “nós vai”? Não se trata de condenar o falar coloquial mas do imperativo de dominar a norma culta e aprender a usá-la como uma ferramenta poderosa, nos contextos apropriados. Essa é a missão nobre da escola.
Contratos e leis são redigidos de forma a somente permitirem uma interpretação. As leis da Física não serão entendidas sem total domínio do que querem dizer as palavras que as expressam. A pesquisa demonstra que grande parte das dificuldades dos alunos com a Matemática deriva-se da falta de compreensão na formulação do problema, expressa em palavras. Se o manual da serra manda desapertar primeiro o parafuso X e deixar o Z apertado, se isso não for entendido, não é possível a regulagem desejada. Uma linha de programação equivocada põe a perder todo o programa. A vida no mundo moderno requer um sólido domínio da linguagem precisa e rigorosa.
Infelizmente, o pensamento analítico não ganha a preeminência que merece, a ser correto o raciocínio acima. Em vez disso, fala-se em contexto, em ouvir os outros, na interpretação histórica ou ideológica do texto e outras manifestações de relativismo. Mas antes de saber o que o outro pensa, é preciso entender as palavras escritas. Este é um ponto de partida inexorável.
Nota-se no meio educacional brasileiro a presença de um lastimável relativismo e subjetivismo, diante das palavras e das afirmativas. Cada um tem a sua verdade. Cada um tem a sua razão. Como posso dizer que o outro está errado? Ou, admitir que estou errado, já que tudo depende de ponto de vista? Se eu acredito em assombrações, esta é a minha verdade e ninguém pode pô-la em dúvida!
Em suma, o documento minimiza a necessidade de desenvolver competência e rigor no uso da língua e se espraia em inúmeras direções menos significativas. Esse é o seu pecado maior.
Ao falar do conteúdos das leituras, há amplas listagens de gêneros, tipos e modalidades, falando de literatura de todos os matizes e origens. Porém, as indicações para a leitura dos clássicos se perdem no meio desta abundância de sugestões outras. Ora, somos herdeiros da Civilização Ocidental, com sua vasta e celebrada literatura. Os alunos ingleses leem os clássicos franceses e vice-versa. Os alemães leem os ingleses e franceses, em que pesem séculos de guerra entre todos eles. Ou seja, há consenso acerca de quais são os livros imortais. Que argumentos haveria para os brasileiros se distanciarem deste cabedal de escritos?
Ao justificar porque aprender inglês, há grandes circunlóquios. Mas a razão é óbvia: o inglês se tornou a língua universal, como foi o francês e o latim. Quem não opera bem neste idioma está irremediavelmente alienado do que está acontecendo no mundo, seja da ciência, da política, dos negócios ou do entretenimento. Tão simples quanto isso.
Por que Educação Física está incluída como Linguagem? Ora, como dito, é uma linguagem corporal. Mas é difícil encontrar proposições significativas que sejam válidas para aprender português e, também, para praticar Educação Física. Seria mais franco dizer que se está lá, é por falta de um lugar melhor.
A proposta para a Educação Física é mais do que bizarra. É quase como transformá-la em uma disciplina acadêmica, com bases filosóficas e sociológicas. Fala-se na “cultura corporal do movimento”, o que quer que seja isso. Mas no fundo, por que não dizer apenas: Mens sana in corpore sano? Nesta idade, os jovens têm uma abundância de energia física e canalizá-la para atividades desportivas é uma das fórmulas mais eficazes que já se encontrou. Por outro lado, sabe-se que a disciplina desenvolvida na prática sistemática de desportos migra para as atividades acadêmicas e profissionais. É curioso que estes dois aspectos não tenham sido mencionados.
Tal como na literatura, nas artes visuais, há pouquíssima ênfase nos clássicos. É uma pena. A arte é apresentada por via de uma ampla argumentação sociológica. Mas e o desenvolvimento da capacidade de desfrute de uma obra de arte? Com ou sem mensagem social ou ideológica, a arte tem vida própria, gera um prazer próprio. Ela se justifica em si e nos permite uma comunhão com alguma coisa que não sabemos bem descrever, mas que nos faz bem.
Matemática
As bases da Matemática são amplamente mais satisfatórias do que as das Linguagens. O texto é mais curto, mais direto e mais explícito. A partir dele, fica mais fácil construir um currículo ou tantas versões quanto se queira.
A se louvar é a preocupação com a contextualização e com o uso da Matemática na vida real. A sua beleza é mencionada, mas não ofusca o seu caráter utilitário. E como sabemos, é a percepção de utilidade que traz a contextualização e aumenta o interesse.
Não obstante, há duas inconveniências no texto. O primeiro é que as competências buscadas se desencontram da organização de um curso sério. Em Matemática, mais do que em outras áreas, uma coisa vem depois da outra e esta ordem não admite muitas variações. Por exemplo, equação do segundo grau vem depois da equação do primeiro e não há como trocar. Mas na discussão das competências, cada tópico da Matemática pode aparecer distante dos outros que lhe são próximos no aprendizado.
A segunda limitação é que há poucos exemplos para ilustrar os argumentos que estão sendo apresentados. Portanto, torna-se um pouco mais difícil a sua leitura.
Considerando que, “na vida real”, os contatos mais frequentes com a Matemática são no lidar com o dinheiro, este é o contexto mais realista para o seu aprendizado. Em particular, a Matemática Financeira é um assunto que deveria merecer muito mais ênfase do que aparece no texto.
Na discussão dos conteúdos de Estatística, o uso da palavra “incerteza” traz dificuldades. A Teoria da Probabilidade se baseia no princípio de que há certa previsibilidade nas distribuições de eventos com distribuições aleatórias. Ou seja, probabilidade é diferente da incerteza. A primeira pode ser estimada, a segunda não. A incerteza se refere a fenômenos intratáveis, por serem totalmente inexpugnáveis as causas que os explicam. Sendo assim, não pode ser objeto de muita elaboração. Por esta razão, estranha-se que o termo incerteza seja tão usado no texto.
Ciências
O texto sobre as Bases Curriculares das Ciências é razoavelmente claro. E também, curto.
O grande problema é o que foi mencionado na introdução: a integração e interdisciplinaridade. Que ambas sejam desejáveis, não há como negar. O problema é o como. Insisto na impossibilidade de aprender tudo ao mesmo tempo e dentro mesma disciplina “integradora”. Ninguém conseguiu fazer isso satisfatoriamente. A questão prática é quando e como abrir espaço para as pontes em direção às outras disciplinas. Lamentavelmente, o documento é avaro neste desafio tão candente.
Há duas etapas. A primeira é ensinar as bases de cada disciplina, seu fundamento operação e seu ritmo de trabalho. A segunda é encontrar o nexo que conecta as disciplinas, entrando no mundo da interdisciplinaridade.
Ciências Humanas e Sociais
De longe, este é o campo mais problemático. Como tratar de um só fôlego filosofia, história, sociologia e geografia. Suspeito que é uma missão impossível. Se isso é verdade, não podemos ser muito severos com os autores. Aliás, por que estas quatro áreas, deixando de fora Economia, Ciência Política, Direito e outras do mesmo jaez?
Para dar uma estrutura lógica à discussão, foram propostos dois critérios: espaço e tempo. Tudo que havia para ser discutido acerca dos quatro campos foi enfiado nestes dois cortes analíticos. Previsivelmente, a argumentação soa artificial.
Não vejo muita salvação nesse embrulho de tradições acadêmicas seculares e com vida própria, buscando uma espinha dorsal unificadora. Sendo assim, nada posso oferecer sobre o assunto.
Mas subjacente à toda a discussão, há um tema que incomoda, pela ausência. Qual é a nossa identidade brasileira, como foi forjada, de que matrizes proveio? Não trato aqui de pontificar acerca da minha visão de como somos e como não somos. O importante, no caso, é não fugir de uma discussão frontal sobre isso e, em vez dela, deixar escapar uma coleção de afirmativas soltas sobre esta ou aquela identidade cultural. Ou ainda, criticando uma identidade ocidental que não foi explicitada.
Tanto quanto entendo, somos herdeiros diretos das tradições da Civilização Ocidental, que se estrutura de forma brilhante com os gregos. Quase tudo que somos e pensamos, em maior ou menor grau, vem desta raiz comum e da sua evolução, a partir do Renascimento.
Um jovem da Costa do Marfim podia falar em casa uma das 78 línguas do país. Seus valores podiam refletir a cultura e história do seu país. Mas na escola, falava francês, aprendia a história da França e sabia de cor a Marselhesa. Devia ser uma santa confusão a cabeça dele. Em contraste, nosso pais tem uma única língua e uma identidade que pode ter temperos africanos ou indígenas, mas antes de tudo, é uma cultura ocidental.
Há boas razões para trazer à discussão outras raízes que se originam dos índios locais, dos africanos e de quem mais seja. Mas sempre com as devidas precauções de ancorar o discurso em um entendimento claro do que historicamente somos e do que não somos. Do que compramos confortavelmente desta tradição e do que não foi bem digerido. Sem isso, corremos o sério risco de uma grande confusão mental e de um relativismo pernicioso.
Na missão de preparar os estudantes, é preciso estabelecer com meridiana clareza o que significa para eles ser herdeiro da tradição greco-romana. Que valores estão embutidos, explícita ou implicitamente na nossa cultura? Destes valores, quais acreditamos serem universais? Quais valores julgamos que nos permitem a autoridade moral para impô-los a outras culturas? Em contraste, quais percepções podemos relativizar ou considerar ambíguas? Este é o ponto de partida, sem o qual, explorar, valorizar ou denegrir outras culturas converte-se em um exercício sem rigor ou mérito.
Herdamos a crença no império da lei, nos sistemas democráticos de governo, na Declaração dos Direitos dos Homens e no método científico. É a partir de crenças deste teor que passamos julgamento em práticas que possam ocorrer dentro ou fora da nossa cultura. Por exemplo, repudiamos o canibalismo, as execuções públicas, a tortura, a discriminação, e por aí afora.
Herdamos e cultivamos valores bem definidos – ainda que, na prática, possamos escorregar. Por esta razão, antes de discutir outras sociedades, é preciso explicitar e estudar os nossos valores, com suas virtudes e limitações. Esse, em si, é um objetivo nobre de qualquer programa de estudo nesta linha. Se os autores querem renegar esta descendência cultural, que o façam de forma clara e proponham algo para a substituir.
Tal como está apresentado, o texto induz a um relativismo e subjetivismo nocivos. Não há como ver o certo e o errado, o pitoresco, o bizarro e o perverso. É curioso, critica-se a nossa herança cultural, em seguida, citam-se os Direitos Humanos como um imperativo ético. Mas de onde vem esses direito.
Afirma-se que a “razão e a experiência” não explicam outras sociedades. Contudo, é difícil imaginar um antropólogo sério que não tenha estes dois princípios como esteios de seus métodos de pesquisa.
Fala-se da “transitoriedade do conhecimento”. Trata-se de uma afirmativa perigosa e fora de contexto. Como está, é um convite ao relativismo científico. Aceitemos, Big Bang, Zeus e Tupã não pertencem ao mesmo universo de discurso. Na tradição da boa ciência, o novo conhecimento, a nova formulação, avança sobre as versões anteriores. Mas é tudo um aperfeiçoamento das teorias anteriores. A Teoria da Relatividade não destruiu Newton. O que fez foi, a partir do que existia, criar um sistema mais geral, no qual a mecânica clássica permanece como um caso particular. Em contraste, não é provável que uma cosmologia pescada nas crenças dos índios brasileiros venha a destronar a que temos, resultado de um longo processo de aproximações sucessivas, por centenas de cientistas e ao longo dos séculos.
Menciona-se a “dúvida sistemática”. Esta foi solidamente proposta por Descartes, mas com um significado muito preciso, como descrito em seu livrinho. Ou seja, para duvidar, só com bons argumentos. Com palpites, não vale.
Menciona-se que “a sociedade capitalista…. reproduz a desigualdade”. Por que não se menciona também que, nos dias de hoje, os países mais igualitários e que oferecem padrões de vida mais elevados para os menos favorecidos são também os capitalistas? Um documento oficial não pode se permitir estas pequenas trapaças intelectuais.
O que não li
Talvez o que mais me incomodou não foi o que li, mas o que não li. Weltanschauung, ideologia, crenças e doutrinas são nomes diferentes para a nossa maneira de ver o mundo e de reagir diante dele, especialmente, nos assuntos de política e sociedade.
Confrontando os fatos que desfilam diante de nós, temos reações quase previsíveis, como resultado destas crenças e valores que espreitam na nossa retaguarda. E que são previsivelmente diferentes daquelas de outra pessoa com persuasões ideológicas diferentes. Ambas resultam de processos longos de aquisição de valores. Esquerda, direita, socialismo, comunismo, fascismo, nazismo, capitalismo, islamismo: somos todos escravos de nossa ideologia. Não se pede a ninguém que deixe de ter ideologia, apenas que entenda que a tem e aceite que esta influencia as suas reações e ações. De resto, é fácil deduzir o viés ideológico dos autores desta parte do documento. Por que não o explicitaram?
Descrever com certo detalhe estas correntes é um assunto que deveria merecer muito mais atenção dos currículos. E atualmente, as versões vigentes são muito diferentes das originais. Considerem-se as muitas ramificações do capitalismo e da socialdemocracia, o welfare state da Comunidade Europeia, o socialismo, incluindo as suas versões chinesas e cubanas e as transformações da experiência soviética. O Islã se bifurcou em interpretações radicalmente diferentes do Corão. Precisamos entender o uso político da religião, tanto nas Cruzadas quanto no fundamentalismo islâmico.
Entre o que está e o que falta neste campo do documento, configura-se um desafio formidável de transformar isso tudo em currículo, com livros e manuais.
0 Comments